09 janeiro, 2006
Olhar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que os rostos passam como a água.
Sentir que a vigília é outro sonho
que sonha no sonhar e que a morte
que teme a nossa carne é essa mesma morte
de cada noite, e que se chama sonho.
Ver no dia ou no ano um símbolo
dos dias do homem e dos seus anos,
converter a afronta dos anos
numa música, num rumor e num símbolo,
ver na morte o sonho, no acaso
uma triste riqueza, assim é a poesia
também imortal e pobre. A poesia
regressa como a aurora e o acaso.
Às vezes em certas tardes um rosto
observa-nos desde o fundo de um espelho,
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela o nosso próprio rosto.
Contam que Ulisses, farto de maravilhas,
chorou de amor ao avistar Itaca
verde e humilde. A arte é essa Itaca
de um verde eterno, e não de maravilhas.
Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heraclito inconstante, que é ele mesmo
e é outro, como o rio interminável.
Jorge Luis Borges
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