30 novembro, 2005

amor de fixação

Há um caminho marítimo no meu gostar de ti.
Há um porto por achar no verbo amar
há um demandar um longe que é aqui.
E o meu gostar de ti é este mar.

Há um Duarte Pacheco em eu gostar
de ti. Há um saber pela experiência
o que em muitos é só um efabular.
Que de naugrágios é feita esta ciência

que é eu gostar de ti como um buscar
as índias que afinal eram aqui.
Ai terras de Aquém-Mar (a-quem-amar)

naus a voltar no meu gostar de ti:
levai-me ao velho pinho do meu lar
eu o vi longe e nele me perdi.


Manuel Alegre

29 novembro, 2005

adeus
















Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou
não chega para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade, uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza de que todas as coisas
estremeciam só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.

Eugénio de Andrade

28 novembro, 2005

O fogo que na branda cera ardia

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que eu na alma vejo,
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dous ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
A apagar seus ardores e tormentos
Na vista de que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela neve
Que queima corações e pensamentos.

Luis Vaz de Camões

27 novembro, 2005

Tout passe par leurs mains, rien ne se fait sans eux

Tout passe par leurs mains, rien ne se fait sans eux,
Ils ont sur le Royaume une pleine puissance,
On soutient qu'il leur faut porter obéissance
Car on les a élus plus sages et plus vieux.

Mais s'il est question d'un de ces Demi-dieux,
Sous ombre de l'appât d'une folle espérance,
Ils font tout, et fut-il contraire à l'ordonnance,
Tant on craint aujourd'hui de leur être odieux.

Et cependant le peuple est pareil à la balle,
Qui jamais n'a repos : et puis rouge, et puis pâle,
Ainsi qu'il est poussé par le muable vent.

On s'en joue, on le pille, on l'endort, on le lie,
Sans crainte de celui qui connaît leur folie,
Et qui les punira au jour du Jugement.

Jacques Grèvin

26 novembro, 2005

Ode à Poesia

É à noite que vens estranha figura
com teus passos doces, inquietantes
e me abres caminhos extenuantes
a arrastar-me indefesa na loucura.

Então, há labaredas que me comem
e vem o sonho prenhe de ilusões
e a minha alma treme em convulsões,
em prazeres loucos que não há no homem.

E há um desencontro de sensações
e há danças fulgurantes de clarões
e há momentos místicos de euforia.

Tenho medo da noite e de mim,
sou um ser sem começo e sem fim
quando tu me possuis, ó poesia

Luísa Beltrão

25 novembro, 2005

Ô toi, que mon amour profond...

A Herminie.

Ô toi, que mon amour profond et sans mélange
Formé de ton image et de ton souvenir,
Avait su distinguer en l'auguste phalange
Des jeunes beautés dont nous faisons notre ange
Pour nous guider dans l'avenir,

Toi que tout rappelait à mon âme inquiète,
Et dont l'âme sans cesse assise auprès de moi,
Me dérobait du temps, qu'à présent je regrette,
Le cours lent à mes voeux, quand la bouche muette,
Je ne pouvais penser qu'à toi,

Qu'as-tu fait - loin de moi, tu fuis, et ton sourire
Vers moi se tourne encor, adorable et moqueur,
Tu sais ce que toujours, tout-puissant, il m'inspire,
Tu l'adresses, hélas ! il me paraît me dire :
Je te quitte de gaîté de coeur !

Tu me railles, méchante, ah ! de ta moquerie,
Si tu voyais combien l'aiguillon me fait mal,
Ce qu'à l'âme, il me met de douleur, de furie !
D'amour ! tu cesserais ta vile fourberie !...
Mais non ! - cela t'est bien égal !

C'est trop te demander - pars, fuis où bon te semble ;
Ailleurs, va-t'en verser la joie et le plaisir ;
Cherche un autre amant ; Dieu fasse qu'il me ressemble !...
Nous pouvions dans l'amour vivre longtemps ensemble...
Seul, dans l'ennui, je vais mourir !

Jules Verne

23 novembro, 2005

O seu santo nome

Não facilite com a palavra Amor.
Não a jogue no espaço, bola de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão e
[é raro].
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura
[sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie!!

Drummond de Andrade

22 novembro, 2005

Pour amour des dames de France

Rondeau

Pour amour des dames de France
Je suis entré en l'observance
Du tres renommé saint François,
Pour cuidier trouver une fois

La doulce voye d'alegence.
Ceint suis de corde de souffrance,
Soulz haire d'Aigre Desirance,
Plus qu'en mon Dieu ne me congnois.

Pour amour des dames de France
Je suis entré en l'observance.
Soubrement vis de ma Plaisance
Et june ce que Desir pense,

Mendiant par tout ou je vois,
Je veille a conter, par mes dois,
Les maulx que m'a fait Esperance
Pour amour des dames de France.

Olivier de la Marche

21 novembro, 2005

Confluência

Ter-te amado, a fantasia exata se cumprindo
sem distância.
Ter-te amado convertendo em mel
o que era ânsia.
Ter-te amado a boca,
o tato, o cheiro:
intumescente encontro de reentrâncias.
Ter-te amado
fez-me sentir:
no corpo teu, o meu desejo
– é ancorada errância.

Affonso Romano de Sant'Anna

20 novembro, 2005

o sorriso




















Creio que foi o sorriso,
0 sorriso foi quem abriu aporta.
Era um sorriso com
muita luz
lá dentro, apetecia entrar nele,
tirar a roupa,
ficar
nu dentro daquele
sorriso.

Correr, navegar, morrer
naquele sorriso.

Eugénio de Andrade

18 novembro, 2005

Sem ti















Não quero viver
sem ti
mais nenhum tempo

Nem sequer um segundo
do teu sono

Encostar-me toda a ti eu não invento
Tu és a minha vida o tempo todo

Maria Teresa Horta

17 novembro, 2005

Tapas os caminhos que vão dar a casa
Cobres os vidros das janelas
Recolhes os cães para a cozinha
Soltas os lobos que saltam as cancelas

Pões guardas atentos espiando no jardim
Madrastas nas histórias inventadas
Anjos do mal voando sem ter fim
Destróis todas as pistas que nos salvam

Depois secas a água e deitas fora o pão
Tiras a esperança
Rejeitas a matriz
E quando já só restam os sinais
Convocas devagar os vendavais

Maria Tereza Horta

16 novembro, 2005

a voz

Da tua voz
o corpo
o tempo já vencido
os dedos que me
vogam
nos cabelos
e os lábios que me
roçam pela boca
nesta mansa tontura
em nunca tê-los...
Meu amor
que quartos na memória
não ocupamos nós
se não partimos...
Mas porque assim te invento
e já te troco as horas
vou passando dos teus braços
que não sei
para o vácuo em que me deixas
se demoras
nesta mansa certeza que não vens.

Maria Tereza Horta

15 novembro, 2005

Fête





















À André Rouveyre.

Feu d'artifice en acier
Qu'il est charmant cet éclairage
Artifice d'artificier
Mêler quelque grâce au courage

Deux fusants
Rose éclatement
Comme deux seins que l'on dégrafe
Tendent leurs bouts insolemment
IL SUT AIMER
Quelle épitaphe

Un poète dans la forêt
Regarde avec indifférence
Son revolver au cran d'arrêt
Des roses mourir d'espérance

Il songe aux roses de Saadi
Et soudain sa tête se penche
Car une rose lui redit
La molle courbe d'une hanche

L'air est plein d'un terrible alcool
Filtré des étoiles mi-closes
Les obus caressent le mol
Parfum nocturne où tu reposes
Mortification des roses

Guillaume Apollinaire

14 novembro, 2005

To Autumn
















Season of mists and mellow fruitfulness,
Close bosom-friend of the maturing sun;
Conspiring with him how to load and bless
With fruit the vines that round the thatch-eves run;
To bend with apples the moss'd cottage-trees,
And fill all fruit with ripeness to the core;
To swell the gourd, and plump the hazel shells
With a sweet kernel; to set budding more,
And still more, later flowers for the bees,
Until they think warm days will never cease,
For summer has o'er-brimm'd their clammy cells.
Who hath not seen thee oft amid thy store?
Sometimes whoever seeks abroad may find
Thee sitting careless on a granary floor,
Thy hair soft-lifted by the winnowing wind;
Or on a half-reap'd furrow sound asleep,
Drowsed with the fume of poppies, while thy hook
Spares the next swath and all its twined flowers:
And sometimes like a gleaner thou dost keep
Steady thy laden head across a brook;
Or by a cider-press, with patient look,
Thou watchest the last oozings, hours by hours.
Where are the songs of Spring? Ay, where are they?
Think not of them, thou hast thy music too,--
While barred clouds bloom the soft-dying day,
And touch the stubble-plains with rosy hue;
Then in a wailful choir the small gnats mourn
Among the river sallows, borne aloft
Or sinking as the light wind lives or dies;
And full-grown lambs loud bleat from hilly bourn;
Hedge-crickets sing; and now with treble soft
The redbreast whistles from a garden-croft,
And gathering swallows twitter in the skies.

John Keats

13 novembro, 2005

















Dois amantes felizes não têm fim nem morte,
nascem e morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.

Pablo Neruda

12 novembro, 2005

As palavras
















São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

11 novembro, 2005

Still I Rise





















You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I'll rise.

Does my sassiness upset you?
Why are you beset with gloom?
'Cause I walk like I've got oil wells
Pumping in my living room.

Just like moons and like suns,
With the certainty of tides,
Just like hopes springing high,
Still I'll rise.

Did you want to see me broken?
Bowed head and lowered eyes?
Shoulders falling down like teardrops,
Weakened by my soulful cries?

Does my haughtiness offend you?
Don't you take it awful hard
'Cause I laugh like I've got gold mines
Diggin' in my own backyard.

You may shoot me with your words,
You may cut me with your eyes,
You may kill me with your hatefulness,
But still, like air, I'll rise.

Does my sexiness upset you?
Does it come as a surprise
That I dance like I've got diamonds
At the meeting of my thighs?

Out of the huts of history's shame
I rise
Up from a past that's rooted in pain
I rise
I'm a black ocean, leaping and wide,
Welling and swelling I bear in the tide.

Leaving behind nights of terror and fear
I rise
Into a daybreak that's wondrously clear
I rise
Bringing the gifts that my ancestors gave,
I am the dream and the hope of the slave.
I rise
I rise
I rise.

Maya Angelou
And Still I Rise

10 novembro, 2005

Spring is like a perhaps hand
















III
Spring is like a perhaps hand
(which comes carefully
out of Nowhere) arranging
a window, into which people look(while
people stare
arranging and changing placing
carefully there a strange
thing and a known thing here) and

changing everything carefully

spring is like a perhaps
Hand in a window
(carefully to
and fro moving New and
Old things, while
people stare carefully
moving a perhaps
fraction of flower here placing
an inch of air there) and

without breaking anything.

E. E. Cummings
The Complete Poems: 1904-1962

09 novembro, 2005

explicação
















O pensamento é triste; o amor insuficiente;
e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.
Deixo que a terra me sustente
guardo o resto para mais tarde.
Deus não fala comigo – e eu sei que me conhece.
A antigos ventos dei as lágrimas que tinha.
A estrela sobe, a estrela desce ...
- espero a minha própria vinda.
(Navego pela memória
sem margens.
Alguém conta a minha história
E alguém mata os personagens.)

Cecília Meireles

08 novembro, 2005

Meaningful Love





















What the bad news was
became apparent too late
for us to do anything good about it.
I was offered no urgent dreaming,
didn't need a name or anything.
Everything was taken care of.
In the medium-size city of my awareness
voles are building colossi.
The blue room is over there.
He put out no feelers.
The day was all as one to him.
Some days he never leaves his room
and those are the best days,
by far.
There were morose gardens farther down the slope,
anthills that looked like they belonged there.
The sausages were undercooked,
the wine too cold, the bread molten.
Who said to bring sweaters?
The climate's not that dependable.
The Atlantic crawled slowly to the left
pinning a message on the unbound golden hair of sleeping maidens,
a ruse for next time,
where fire and water are rampant in the streets,
the gate closed—no visitors today
or any evident heartbeat.
I got rid of the book of fairy tales,
pawned my old car, bought a ticket to the funhouse,
found myself back here at six o'clock,
pondering "possible side effects."
There was no harm in loving then,
no certain good either. But love was loving servants
or bosses. No straight road issuing from it.
Leaves around the door are penciled losses.
Twenty years to fix it.
Asters bloom one way or another.

John Ashbery
From Where Shall I Wander: New Poems.

07 novembro, 2005

Uma vez que já tudo se perdeu





















Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhuma ocasião vale o temor
Ergue a cabeça dignamente irmão
Falo-te em nome seja de quem for

No princípio de tudo o coração
Como o fogo alastrava em redor
Uma nuvem qualquer toldou então
Céus de canção promessa e amor

Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
Lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
Uma vez que já tudo se perdeu

Ruy Belo

06 novembro, 2005

My Letters! all dead paper. . .




















(Sonnet XXVIII)

My letters! all dead paper, mute and white!
And yet they seem alive and quivering
Against my tremulous hands which loose the string
And let them drop down on my knee tonight.
This said—he wished to have me in his sight
Once, as a friend: this fixed a day in spring
To come and touch my hand. . . a simple thing,
Yes I wept for it— this . . . the paper's light. . .
Said, Dear, I love thee; and I sank and quailed
As if God's future thundered on my past.
This said, I am thine—and so its ink has paled
With lying at my heart that beat too fast.
And this . . . 0 Love, thy words have ill availed
If, what this said, I dared repeat at last!

Elizabeth Barret Browning

05 novembro, 2005

as sem razões do amor














Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
nem se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Carlos Drummond de Andrade

04 novembro, 2005

Design
















I found a dimpled spider, fat and white,
On a white heal-all, holding up a moth
Like a white piece of rigid satin cloth-
Assorted characters of death and blight
Mixed ready to begin the morning right,
Like the ingredients of a witches' broth-
A snow-drop spider, a flower like a froth,
And dead wings carried like a paper kite.
What had that flower to do with being white,
The wayside blue and innocent heal-all?
What brought the kindred spider to that height,
Then steered the white moth thither in the night?
What but design of darkness to appall?-
If design govern in a thing so small.

Robert Frost

02 novembro, 2005

Auto-retrato















Para onde quer que vá
já lá estive
o que quer que faça
não posso decidir
quem quer que eu ame
é uma parte
por muito que morra
fico com vida

Eva Christina Zeller
Sigo a Água

01 novembro, 2005

Colhendo amoras














Ninguém no caminho, e nada, nada a não ser amoras,
amoras dos dois lados, embora mais à direita,
uma álea de amoras, descendo em curvas fechadas, e um
mar
algures, lá ao longe, arfando. Amoras
tão grandes como a cabeça do meu polegar, e mudas como
olhos
negros nas sebes, repletas
de um suco azul-vermelho. Este desperdiça-se nos meus
dedos.
Não pedira tal comunhão de sangue; devem amar-me.
Comprimem-se numa garrafa de leite, de encontro aos seus
lados.
Sobre mim passam, com a sua cacofonia, os corvos em
bandos negros,
pedaços de papel queimado oscilando num céu ventoso.
A sua voz é a única que está a protestar, a protestar.
Julgo que o mar não vai mesmo aparecer.
Os verdes e altos prados brilham como iluminados por
dentro.
Chego a um arbusto de bagas tão maduras: é um arbusto
de moscas,
suspendendo os seus abdómens azuis esverdeados e os
vidrilhos alados de um biombo chinês.
O festim de mel das bagas surpreendeu-as; julgam-se no
paraíso.Para além de uma curva, as bagas e os arbustos acabam.
A única coisa que vem a seguir é o mar.
De entre duas colinas sopra contra mim um vento súbito,
sacudindo como fantasmas a sua roupa branca contra o
meu rosto.
Estas colinas são demasiado verdes e suaves para terem
saboreado o sal.
Sigo, entre elas, a vereda aberta pelas ovelhas. Uma última
curva leva-me
até à face norte das colinas, e a face é urna rocha alaranjada
que olha para nada, nada a não ser uma grande extensão
de luzes brancas e cor de estanho e um ruído como o de
um ourives
batendo sempre um metal rebelde.

Sylvia Plath
Pela Água
Tradução de Maria de Lourdes Guimarães