31 julho, 2007












No mundo só há um templo: o corpo humano.
Nada mais sagrado do que esta forma sublime.
Inclinarmo-nos perante um homem,
é render homenagem a esta revelação da carne.
É no céu que tocamos quando tocamos num corpo humano.

Todo o objecto amado é o centro de um paraíso...

Novalis

25 julho, 2007

do coração

















Quem parte e reparte

(o coração) fica sempre
com a melhor parte.



Francisco José Viegas

23 julho, 2007

Quando, no nome do mar

















Quando digo o nome do mar não é do mar

que digo o nome, mas de tudo o que
antes e para lá do mar ficou
em sobressalto nos perigos da sua travessia.


Aprendi isso em lugares raros,

como o último silêncio, a última gota

de água ou de mel.


Francisco José Viegas

22 julho, 2007

Poema XVIII











Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.

Imagem dos gestos que tracei,
irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.

Eugénio de Andrade

21 julho, 2007

Ícaro






O sol dos Sonhos derreteu-lhe as asas.
E caiu lá do céu onde voava
Ao rés-do-chão da vida.
A um mar sem ondas onde navegava
A paz rasteira nunca desmentida...

Mas ainda dorida
No seio sedativo da planura,
A alma já lhe pede impenitente,
A graça urgente
De uma nova aventura.

Miguel Torga

(borboleta: parnasius mnemosyne)

18 julho, 2007
















Somos folhas breves onde dormem
aves de silêncio e solidão.



Somos só folhas ou o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.



Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.



Eugénio de Andrade

17 julho, 2007
















Pensar em ti é coisa delicada.
É um diluír de tinta espessa e farta
e o passá-la em finíssima aguada
com um pincel de marta.


Um pesar grãos de nada em mínima balança
um armar de arames cauteloso e atento,
um proteger a chama contra o vento,
pentear cabelinhos de criança.

Um desembaraçar de linhas de costura,
um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,
um planar de gaivota como um lábio a sorrir,


Penso em ti com tamanha ternura
como se fosses vidro ou película de loiça
que apenas como o pensar te pudesses partir.

António Gedeão

16 julho, 2007

















-

Há cartas que nunca mais chegam,
as que não chegarão nunca.


O nosso destino suspenso
das notícias de longe.

Para alguém temos de ser
a luz e o lume,
o fogo e a água.


João Camilo

14 julho, 2007

Possibilidades














Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievski.
Prefiro-me a gostar das pessoas
em vez de amar a humanidade.
Prefiro para uma emergência ter agulha e linhas.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é a culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro falar de outras coisas com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não os escrever.
Prefiro no amor os pequenos aniversários
para festejar todos os dias.
Prefiro os moralistas que nada me prometem.
Prefiro uma bondade algo prudente
a outra confiante em demasia.
Prefiro a terra à civil.
Prefiro os países conquistados
aos conquistadores.
Prefiro guardar as minhas reservas.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro as fábulas de Grimm às primeiras páginas dos jornais.
Prefiro folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro gavetas.
Prefiro muitas coisas que não menciono aqui
a outras também aqui não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
aos dispostos em bicha para o número.
Prefiro o tempo de insectos ao de estrelas.
Prefiro fazer figas.
Prefiro não perguntar se ainda demora e quando é.
Prefiro tomar em consideração a própria possibilidade
de ter a existência o seu sentido.


Wislawa Szymborska

13 julho, 2007























Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

Donde teria vindo! (Não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...

Alexandre O'Neill

12 julho, 2007





















Doce contentamento já passado,
em que todo o meu bem já consistia,
quem vos levou de minha companhia
e me deixou de vós tão apartado?

Quem cuidou que se visse neste estado
naquelas breves horas de alegria,
quando minha ventura consentia
que de enganos vivesse meu cuidado?

Fortuna minha foi cruel e dura
aquela, que causou meu perdimento,
com a qual ninguém pode ter cautela.
Nem se engane nenhüa criatura,
que não pode nenhum impedimento
fugir do que ordena sua estrela.

Luís Vaz de Camões

11 julho, 2007

Havia uma palavra



















Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula. Ignorada.
Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.
Do fundo do tempo,
martelava.
contra o muro.
Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.
de Matéria Solar

Eugénio de Andrade
(oferta de ad astra)

09 julho, 2007

Há dias























Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.


Eugénio de Andrade

08 julho, 2007

Querer


















Não te quero senão porque te quero
E de querer-te a não querer-te chego
E de esperar-te quando não te espero
Passa meu coração do frio ao fogo.
-
Te quero só porque a ti te quero,
Te odeio sem fim, e odiando-te rogo,
E a medida de meu amor viageiro
É não ver-te e amar-te como um cego.
-
Talvez consumirá a luz de janeiro
Seu raio cruel, meu coração inteiro,
Roubando-me a chave do sossego.
-
Nesta história só eu morro
E morrerei de amor porque te quero,
Porque te quero, amor, a sangue e a fogo.
-
Pablo Neruda

06 julho, 2007

























Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
(...)
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu coração
nem o meu grito de libertação.

Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa

05 julho, 2007

(a carta da paixão)




















Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração
(...)
A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore

Herberto Helder

04 julho, 2007


















Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.

herberto helder

03 julho, 2007



Passa uma borboleta por diante de mim

E pela primeira vez no Universo eu reparo

Que as borboletas não têm cor nem movimento,

Assim como as flores não têm perfume nem cor.

A cor é que tem cor nas asas da borboleta,

No movimento da borboleta o movimento é que se move,

O perfume é que tem perfume no perfume da flor.

A borboleta é apenas a borboleta

E a flor é apenas flor.


Alberto Caeiro

02 julho, 2007

Pequena elegia de setembro




















Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade