31 julho, 2006

A Troca da Roda


















Estou sentado à beira da estrada,
o condutor muda a roda.
Não me agrada o lugar de onde venho.
Não me agrada o lugar para onde vou.
Por que olho a troca da roda
com impaciência?

Bertold Brecht

30 julho, 2006

















Somos de barro. Iguais aos mais.
Ó alegria de sabe-lo!
(Correi, felizes lágrimas,
por sobre o seu cabelo!)

Depois de mais aquela confissão,
impuros nos achamos;
nos descobrimos frutos
do mesmo chão.

Pecado, Amor? Pecado
fôra apenas não fazer do pecado
a força que nos ligue
e nos obrigue a lutar lado a lado.

O meu orgulho assim é que nos quer.
Há de ser sempre nosso o pão, ser nossa a água.
Mas vencidas os ganham, vencedores,
nossa vergonha e nossa mágoa.

O nosso Amor, que história sem beleza,
se não fôra ascensão e queda e teimosia,
conquista... (E novamente queda
e novamente luta, ascensão... ) Ó meu amor, tão fria,

se nascêramos puros, nossa história!
Chora sobre o meu ombro. Confessamos.
E mais certos de nós, mais um do outro,
mais impuros, mais puros, nós ficamos.

Sebastião da Gama

29 julho, 2006

Invento



















Deponho
suponho
e descrevo a pulso

subindo
pela fímbria do despido

Porque nada é verdade
se eu invento
o avesso daquilo que é vestido

Mª Tereza Horta

28 julho, 2006

Poema XLIV










Saberás que não te amo e que te amo
posto que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem uma metade de frio.

Eu te amo para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos as chaves da fortuna
e um incerto destino desafortunado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda

27 julho, 2006

Se fôssemos infinitos






















Fossemos infinitos
Tudo mudaria
Como somos finitos
Muito permanece.

Bertold Brecht

26 julho, 2006



















Todas as rosas são a mesma rosa,
amor!, a única rosa;
e tudo está contido nela,
breve imagem do mundo,
amor!, a única rosa.


Juan Ramón Jiménez

25 julho, 2006

Earth and Sea




















It does me good to see the ships
Back safely from the deep sea main;
To see the slender mizzen tips
And all the ropes that stood the strain;

To hear the old men shout, "Ahoy!"
Glad-hearted at the journey done,
Who fix the favourite to the buoy
Of sea and wind and moon and sun.

To meet, when sails are lashed to spars,
The men for whom earth's free from care,
And heaven a clock with certain stars,
And hell a word by which to swear.

Oliver St. John Gogarty

24 julho, 2006

Revelação


















Meu ofício incerto das palavras
a evocação do tempo
o recurso ao fogo

Meu o provisório olhar
sobre este rio
o fascínio consentido das margens
sitiando a distância

Meus são os dedos que em tumulto
modelam capitéis
de sombras e arestas

Mas oculto na brisa
és Tu quem percorre o poema
despertando as aves
e dando nome aos peixes

José Tolentino Mendonça

23 julho, 2006

nota intercalar


Por causa da nova «casa de Férias» da Viajante,
os links dos visitantes deste Blog passam igualmente para lá, de modo a navegar mais rapidamente.
Se tal ferir a sensibilidade de alguém, deixem referência em comentário...

Escrevo























Escrevo já com a noite
em casa. Escrevo
sobre a manhã em que escutava
o rumor da cal ou do lume,
e eras tu somente
a dizer o meu nome.
Escrevo para levar à boca
o sabor da primeira
boca que beijei a tremer.
Escrevo para subir
às fontes.
E voltar a nascer.

Eugénio de Andrade

22 julho, 2006

LXVII


















Que saudades eu sinto desta flor,
Que vai murchar!
E desta gota de água e de esplendor,
Um pequenino mundo que é só mar.
E desta imagem que por mim passou
Misteriosamente.
E desta folha pálida e tremente
Que tombou...
Da voz do vento que me deixa mudo,
E deste meu espanto de criança.
Que saudades de tudo eu sinto, porque tudo
É feito de lembrança...

Teixeira de Pascoaes

21 julho, 2006

Reinvenção



















A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas. . .
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo...
– mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcança...
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na trevas
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meireles

20 julho, 2006

Instante



















Quem retirou o navio
de diante do terraço?

Porque fica emudecido
agora mesmo este pássaro?

Ouço de repente um silvo
como se ardesse um teatro.

E nada disto é comigo.
Mas sinto-me abandonado.

David Mourão-Ferreira

19 julho, 2006

Alguien


















Un hombre trabajado por el tiempo,
un hombre que ni siquiera espera la muerte
(las pruebas de la muerte son estadísticas
y nadie hay que no corra el albur
de ser el primer inmortal),
un hombre que ha aprendido a agradecer
las modestas limosnas de los días:
el sueño, la rutina, el sabor del agua,
una no sospechada etimología,
un verso latino o sajón,
la memoria de una mujer que lo ha abandonado
hace ya tantos años
que hoy puede recordarla sin amargura,
un hombre que no ignora que el presente
ya es el porvenir y el olvido,
un hombre que ha sido desleal
y con el que fueron desleales,
puede sentir de pronto, al cruzar la calle,
una misteriosa felicidad
que no viene del lado de la esperanza
sino de una antigua inocencia,
de su propia raíz o de un dios disperso.

Sabe que no debe mirarla de cerca,
porque hay razones más terribles que tigres
que le demostrarán su obligación
de ser un desdichado,
pero humildemente recibe
esa felicidad, esa ráfaga.

Quizá en la muerte para siempre seremos,
cuando el polvo sea polvo,
esa indescifrable raíz,
de la cual para siempre crecerá,
ecuánime o atroz,
nuestro solitario cielo o infierno.

Jorge Luis Borges

18 julho, 2006






















É quando a chuva cai, é quando
olhado devagar que brilha o corpo.
Para dizê-lo a boca é muito pouco,
era preciso que também as mãos
vissem esse brilho, dele fizessem
não só a música, mas a casa.
Todas as palavras falam desse lume,
sabem à pele dessa luz molhada.

Eugénio de Andrade



















Trabalho o poema sobre uma hipótese: o amor
que se despeja no copo da vida, até meio, como se
o pudéssemos beber de um trago. No fundo,
como o vinho turvo, deixa um gosto amargo
na boca. Pergunto onde está a transparência do
vidro, a pureza do líquido inicial, a energia
de quem procura esvaziar a garrafa; e a resposta
são estes cacos que nos cortam as mãos, a mesa
da alma suja de restos, palavras espalhadas
num cansaço de sentidos. Volto, então, à primeira
hipótese. O amor. Mas sem o gastar de uma vez,
esperando que o tempo encha o copo até cima,
para que o possa erguer à luz do teu corpo
e veja, através dele, o teu rosto inteiro.

Nuno Júdice

17 julho, 2006





















Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face
Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio
Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente

Sophia de Mello Breyner Andresen

16 julho, 2006

Impressionista






















Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

Adélia Prado

15 julho, 2006

Onde os lábios


























Os lábios.
Distante, arrefecida chama.
Não só os lábios, também as estrelas
são distantes.
E os bosques.
E as nascentes.
Também as nascentes são distantes.
As nascentes onde os lábios,
onde as estrelas bebem..
Só o deserto é próximo, só
o deserto.

Eugénio de Andrade

14 julho, 2006

Green God



















Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.

Eugénio de Andrade

13 julho, 2006

O sol nas gotas do orvalho.
Depressa,
colher os diamantes.

Bashô

12 julho, 2006

A beleza das estrelas
























Contemplo a beleza das estrelas que cobrem a face dos céus,
Imagino-as como um jardim em flor
Até que a alva alba sobe, como pomba,
Debaixo das asas de um corvo
Que esvoaça para longe.

Moisés ibn Ezra

10 julho, 2006

As mãos























Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre

09 julho, 2006

Coisa amar
















Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.

Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

Manuel Alegre

08 julho, 2006

Identidade

















Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

Miguel Torga

07 julho, 2006

Apenas estando aqui,
estou aqui,
e a neve cai.

Issa Kobayashi

06 julho, 2006

Erros meus, má fortuna, amor ardente
























Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís de Camões

05 julho, 2006

Momento Quatro






















Modelei sonhos de púrpura
quando os dias eram habitados
com gestos de espuma
e palavras vestidas de delírio

E quando os dias se ausentaram
e os gestos se perderam no vazio

eu me absolvi
apesar de tanta dor e tanta perda

António Sem

04 julho, 2006

Perco-me e encontro-me























Perco-me e encontro-me
em cada instante nomeado
quando as palavras se tornam mudas
invertendo o silêncio da luz
que me saciam de mistério
e teimam em me pertencer

Eu me perco de silêncio
eu me encontro de esplendor

António Sem

02 julho, 2006

À noite as estrelas
descem do céu
e vêm boiar no rio

Mésseder

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Noite na praia...
Os pescadores recolhem
a estrela cadente.

Ana Suzuki