29 junho, 2006





















Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

Fernando Pessoa

28 junho, 2006

Bastava-nos amar e não bastava





















Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.Respirar.

Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar

a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.

Joaquim Pessoa

26 junho, 2006

A matéria das palavras

Estamos aqui. Interrogamos símbolos persistentes.
É a hora do infinito desacerto-acerto.

O vulto da nossa singularidade viaja por palavras
matéria insensível de um poder esquivo.

Confissões discordantes pavimentam a nossa hesitação.
Há uma embriaguês de luto em nossos actos-chaves.

Aspiramos à alta liberdade
um bem sempre suspenso que nos crucifica.

Cheios de ávidas esperanças sobrevoamos
e depois mergulhamos nessa outra esfera imaginária.

Com arriscada atenção aspiramos à ditosa notícia de uma
perfeição especialista em fracassos.

Estrangeiros sempre
agudamente colhemos os frutos discordantes.

Ana Hatherly

25 junho, 2006


Na água profunda
assobia uma foice
ceifando as canas


Buson
O Crisântemo Branco - antologia de haiku

24 junho, 2006





















Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?


Paulo Leminski

23 junho, 2006

PEDRA FILOSOFAL













Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António Gedeão

22 junho, 2006

Há Dias





















Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda
avistamos as crianças
correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-me comigo
quero eu dizer :
com o que fui quando cheguei a ser
luminosa presença
da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo e
dura
dura ainda.

Eugénio de Andrade

21 junho, 2006

















As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar

ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo
e o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada

Al Berto

19 junho, 2006























É sempre comovente o pôr do sol
por indigente ou berrante que seja,
mas ainda bem mais comovedor
é o brilho desesperado e derradeiro
que enferruja a planície
quando o último sol ficou submerso.
Dói-nos reter essa luz tensa e clara,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e que pára de súbito
quando notamos como é falsa,
quando acabam os sonhos,
quando sabemos que sonhamos.

Jorge Luis Borges

18 junho, 2006

Aranha

















Aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida baloiçada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou presa do meu suporte.

Fernando Pessoa

15 junho, 2006























O teu olhar fixou-se
numa nuvem,
um ponto que aumentou imensamente
e te retém ao começo da noite
como se fosse a ameaça
de que talvez conheças a origem num passado
ácido de faces, posso
recomeçar quase tudo levantando
a pedra
final que nos esmaga;
há coisas
que não têm recomeço

Gastão Cruz

14 junho, 2006

Tarde no mar

















A tarde é de oiro rútilo: esbraseia.
O horizonte: um cacto purpurino.
E a vaga esbelta que palpita e ondeia,
Com uma frágil graça de menino,

Pousa o manto de arminho na areia
E lá vai, e lá segue o seu destino!
E o sol, nas casas brancas que incendeia,
Desenha mãos sangrentas de assassino!

Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...

E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes...

Florbela Espanca

13 junho, 2006

Charneca em Flor

















Enche o meu peito, num encanto mago,
O frémito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...

Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!

E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu bruel,
E já não sou, Amor, Soror Saudade...

Olhos a arder em êxtases de amor,
Boca a saber a sol, a fruto, a mel:
Sou a charneca rude a abrir em flor!

Florbela Espanca

12 junho, 2006




















(...)
[Olha: eu queria saber em que parte
se morre, para ter uma flor e com ela
atravessar vozes velozes e ardentes e crimes
sem roupa. Existe nas ilhas um silêncio para
a poeira tremer, e o teu rosto se voltar lentamente cheio
de febre para o lado de uma canção
[terrível e fria.

Herberto Helder

09 junho, 2006

Coisa amar





















Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.

Amor ardente. Amor ardente. E mar.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.

E mar. Amar: as coisas perigosas.
Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te logamente como doi

desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.

Manuel Alegre

07 junho, 2006















Chove...
Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...
Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes Ferreira

06 junho, 2006
















Sem lástima e sem ira o tempo arromba
As heróicas espadas. Pobre e triste
À tua pátria nostálgica voltaste,
Ó capitão, para nela morrer
E com ela. No mágico deserto
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Quero saber se aquém da ribeira
Última compreendeste humildemente
Que tudo o perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana
Mutação) na tua Eneida lusitana.

Jorge Luis Borges

05 junho, 2006
















Se com flores se fizeram revoluções
que linda revolução daria este canteiro!
Quando o clarim do sol toca a matinas
ei-las que emergem do nocturno sono
e as brandas, tenras hastes se perfilam.
Estão fardadas de verde clorofila,
botões vermelhos, faixas amarelas,
penachos brancos que se balanceiam
em mesuras que a aragem determina.
É do regulamento ser viçoso
quando a seiva crepita nas nervuras
e frenética ascende aos altos vértices.

São flores e, como flores, abrem corolas
na memória dos homens.

Recorda o homem que no berço adormecia,
epiderme de flor num sorriso de flor,
e que entre flores correu quando era infante,
ébrio de cheiros,
abrindo os olhos grandes como flores.
Depois, a flor que ela prendeu entre os cabelos,
rede de borboletas, armadilha de unguentos,
o amor à flor dos lábios,
o amor dos lábios desdobrado em flor,
a flor na emboscada, comprometida e ingénua,
colaborante e alheia,
a flor no seu canteiro à espera que a exaltem,
que em respeito a violem
e em sagrado a venerem.

Flores estupefacientes, droga dos olhos, vício dos sentidos.

Ai flores, ai flores das verdes hastes!
A César o que é de César. Às flores o que é das flores.

António Gedeão

04 junho, 2006





















Disfarça, tem gente olhando
Uns, olham pro alto,
cornetas, luas, galáxias.
Outros, olham de banda,
lunetas, luares, sintaxes.
De frente ou de lado,
sempre tem gente olhando,
olhando ou sendo olhado.
Outros olham para baixo,
procurando algum vestígio
do tempo que a gente acha,
em busca do espaço perdido.
Raros olham para dentro,
já que dentro não tem nada.
Apenas um peso imenso,
a alma, esse conto de fada.

Paulo Leminski,
"La vie en close"

03 junho, 2006















Por que não cai a noite, de uma vez?
- Custa viver assim aos encontrões!
Já sei de cor os passos que me cercam,
o silêncio que pede pelas ruas,
e o desenho de todos os portões.

Por que não cai a noite, de uma vez?
- Irritam-me estas horas penduradas
como frutos maduros que não tombam.

(E dentro em mim, ninguém vem desfazer
o novelo das tardes enroladas.)

Maria Alberta Meneres

02 junho, 2006
















As coisas que existiam antes de tu morreres
e as coisas que surgiram depois:

Ás primeiras pertencem, antes do mais,
as tuas roupas, as jóias e as fotografias
e o nome da mulher que te deu o nome
e também morreu jovem…
Mas também um par de receitas, o arranjo
de um certo canto na sala,
uma camisa que me passaste a ferro
e que guardo cuidadosamente
debaixo da minha resma de camisas,
Algumas peças de música, e o cão
sarnento que por aí anda
Com um sorriso estúpido, como se ainda aqui estivesses.

Às últimas pertencem a minha caneta,
um perfume conhecido
na pele de uma mulher que mal conheço
e as novas lâmpadas que pus no candeeiro do quarto
que iluminam o que leio acerca de ti
em todos os livros que leio.

As primeiras recordam-me que exististe,
as últimas que já não existes.
Que sejam quase indistinguíveis
é o mais difícil de suportar.

Henrik Nordbrandt

01 junho, 2006

O sal da língua
















Escuta, escuta:
tenho ainda uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém - mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.

Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.

Elas são a casa, o sal da língua.

Eugénio de Andrade