28 fevereiro, 2006

Entre nós e as palavras

















Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Mário Cesariny de Vasconcelos

27 fevereiro, 2006

Caminho sem pés e sem sonhos

















Caminho sem pés e sem sonhos
só com a respiração e a cadência
da muda passagem dos sopros
caminho como um remo que se afunda.

os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes
para que a elevação e a profundidade
se conjuguem.

avanço sem jugo e ando longe
de caminhar sobre as águas do céu.

Daniel Faria

26 fevereiro, 2006

Bastava-nos amar e não bastava















Bastava-nos amar. E não bastava
o mar. E o corpo? O corpo que se enleia?
O vento como um barco: a navegar.
Pelo mar. Por um rio ou uma veia.

Bastava-nos ficar. E não bastava
o mar a querer doer em cada ideia.
Já não bastava olhar. Urgente: amar.
E ficar. E fazermos uma teia.

Respirar. Respirar. Até que o mar
pudesse ser amor em maré cheia.
E bastava. Bastava respirar

a tua pele molhada de sereia.
Bastava, sim, encher o peito de ar.
Fazer amor contigo sobre a areia.

Joaquim Pessoa

25 fevereiro, 2006

Pouco mais há a dizer





















pouco mais há a dizer. caminho largando
os últimos resíduos da memória. fragmentos de noite
escritos com o coração a pressentir as catástrofes
do mundo. a grande solidão é um lugar branco
povoado de mitos, de tristezas e de alegria. mas
estou quase sempre triste. por exemplo, no fundo
deste poço vi inclinar-se a sombra adolescente que
fui. água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos.
este sol queimando a pele das plantas. caminho
pelos textos e reparo em tudo isto. o que começo
deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a
certeza, inacabada. o mundo pertenceu-me, a
memória revela-me essa herança, esse bem. hoje,
apenas sinto o vento reacender feridas, nada
possuo, nem sequer o sofrimento. outra memória
vai tomando forma, assusta-me. ainda quase nada
aconteceu e já envelheci tanto. um jogo de
estilhaços é tudo o que possuo, a memória que
vem ainda não tem a dor dentro dela. as
fotografias e os textos, teu rosto, poderiam
projectar-me para um futuro mais feliz, ou
contarem-me os desastres dos recomeçados
regressos. mas, quando mais tarde conseguir
reparar que a vida vibrou em mim, um instante,
terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu.
nem mesmo a vida, nenhuma morte. na mesma
posição, reclinado sobre meu frágil corpo,
recomeço a escrever. estou de novo ocupado em
esquecer-me. a escrita é precária morada para o
vaguear do coração. resta-me a perturbação de ter
atravessado os dias, humildemente, sem
queixumes. anoitece ou amanhece, tanto faz.

Al Berto

24 fevereiro, 2006

Ofício Imperfeito
















Atormenta-me a certeza calma e clara
de que jamais concluirei um único poema.
Atormentam-me, mas não me afligem,
as estrelas infinitamente brilhantes
e a luz do sol exacto sobre os dias.
Flor ou pássaro são palavras que me agradam
mas não sei se dão sentido ao silêncio.
São-me gratas todas as formas e cores do amor,
mesmo quando coisa amada e amor possível
se confundem no objecto impossível do desejo.
Gosto das praias que se despem no Outono,
embora me incomode o vento quando não traz gaivotas.
Sinto prazer em imaginar labirintos (sobretudo de versos)
ou perder-me na encruzilhada dos sonhos.
Sei que tudo isto (uma nuvem azul, um sorriso)
fica aquém do poema, fica no limiar da palavra,
mas mesmo assim persisto no ofício de contemplar a esfinge.

Paulo Ramalho

23 fevereiro, 2006

Sem medo

















Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

Clarice Lispector

22 fevereiro, 2006

Viagem

















Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

Miguel Torga

21 fevereiro, 2006

Ícaro

















O sol dos Sonhos derreteu-lhe as asas.
E caiu lá do céu onde voava
Ao rés-do-chão da vida.
A um mar sem ondas onde navegava
A paz rasteira nunca desmentida...

Mas ainda dorida
No seio sedativo da planura,
A alma já lhe pede impenitente,
A graça urgente
De uma nova aventura.

Miguel Torga, Diário, XII

20 fevereiro, 2006

Conquista
















Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Miguel Torga

19 fevereiro, 2006

Fragmentos

















1
Poesia é amargura,
mel celeste que emana
de um favo invisível
que as almas fabricam.

2
Eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado
meu coração frio.

3
Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.

4
Rumor.
Ainda que não fique nada mais que o rumor.
Aroma.
Ainda que não fique mais que aroma.
Mas arranca de mim
a recordação e a cor das velhas horas.

5
Agonia, agonia, sonho, fermento e sonho.
Este é o mundo, amigo, agonia, agonia.

6
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco vai sobre o mar
e o cavalo na montanha.
Com a sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
com olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
Por sob a lua gitana, as coisas estão mirando-a e ela não pode mirá-las.

7
Não me perguntem nada.
Eu vi que as coisas quando buscam seu curso encontram seu vazio.

8
Quero dormir o sono das maçãs,
afastar-me do tumulto dos cemitérios.


Frederico García Lorca

15 fevereiro, 2006
















E tudo se resumiu à evidência do pó.
Uma lenda, um ofício, uma teia de
apertadas mágoas que nunca mais
deixará passar a luz.
A tua luz, sol, lua ou juvenil chama dos
campos livres,
apagou-se violentamente.
Nos aquários da noite caiu uma estrela.
O mundo caiu sobre os teus ombros.

José Agostinho Baptista

13 fevereiro, 2006

















Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória.
Porque assim é preciso
Para que tu vivas.

Hilda Hirst

12 fevereiro, 2006

Amavisse

















Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo
brusco Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Hilda Hilst

11 fevereiro, 2006

último refúgio
















Poesia - amparo de ânsias e agonias,
urna do pranto amargo e solitário.
Poesia - contas mágicas de um rosário
de ardentes preces, pelas noites frias.

Acolhes, maternal, as litanias da alma
que enfrenta o sofrimento vário
e se agasalha no hiemal sudário,
deslembrada de risos e alegrias.

Mesmo que eu seja a última a venerar-te,
humilde ancila, fiel em procurar-te,
constante seguirei os teus caminhos,

Pois contigo, em estradas de mil flores,
descrevi minhas ilusões, cantei amores
sob o teu manto de veludo e arminhos.

Sylvia V. Câmara

10 fevereiro, 2006

saudade





















Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio tua virtude,
tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raíz exposta

Traz de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda em mim
os animais que atormentam o meu sonho.

Mia Couto

09 fevereiro, 2006

Ah, Perante





















Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível — a de haver uma realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
— Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,
Se empequena! Não, não se empequena... se transforma em outra coisa
— Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Urna coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino
—Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é um tudo,
Por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa!

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas idéias que tremo, com a minha consciência de mim,
Com a substância essencial do meu ser abstrato
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!

Cárcere do Ser, não há libertação de ti?
Cárcere de pensar, não há libertação de ti?

Ah, não, nenhuma — nem morte, nem vida, nem Deus!
Nós, irmãos gêmeos do Destino em ambos existirmos,
Nós, irmãos gêmeos dos Deuses todos, de toda a espécie,
Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra, S
ombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.

Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,
Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,
Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,
Por que não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?
Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?
A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,
São mistérios menores que a Morte?
Como se tudo é o mesmo mistério?
E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.
Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!
Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.

Álvaro de Campos

08 fevereiro, 2006
















Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: - a luz do dia!-
Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
- Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água - música da terra,
Serias água pura e sempre calma!-
Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

António Botto

05 fevereiro, 2006

Epígrafe





















Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre…

Homem que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa…

Eugénio de Castro

02 fevereiro, 2006





















O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas
-Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada
-Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo,
Cansaço...

Álvaro de Campos

01 fevereiro, 2006

excepção... e jogo





















Ela lançou a etapa seguinte do Jogo "5 Manias" (passou a tocha, por assim dizer)

Uma por cada dedo da mão, penso:

- mexer o café devagar e lamber a colher

- dar um "jeitinho" nas pilhas de livros, para ficarem direitas

- ouvir um tema que encantou, até cantarolar sem hesitações

- não usar calão, nem mesmo muito zangada

- fazer citações de frases curtas ou de adágios.

Ou mais longas, mas ritmadas. Como:
"Todos os homens têm manias: uns gostam de cavalos; outros de cães;
outros querem ouro, outros, honraria.
Quanto a mim, nenhuma dessas coisas me atrai.
Mas tenho paixão por amigos" (Sócrates)

Passar a mais 5?

Esta é fácil, passo a tocha
e eles aceitarão ou não, livremente:
CAPtain
YardBird
Jacky
Hipatia
Mar Revolto

















Pouco tenho para alinhavar.
Dizer-te que estou longe
não apaga esta ausência que,
inelutavelmente,
nos distanciou.

Cercam-nos muros de silêncio
opresso.
A própria hera não ousa
na despudorada nudez branca
de paredes que interditam

a fantasia ao forasteiro
voraz.
O gesto tolhido,
o pretexto adiado
e a memória a estiolar.

Eduardo Pitta



















Ouve, tu que não existes em nenhum céu:

Estou farto de escavar nos olhos
abismos de ternura
onde cabem todos
menos eu.

Estou farto de palavras de perdão
que me ferem a boca
dum frio de lágrimas quentes de punhal.

Estou farto desta dor inútil
de chorar por mim nos outros.

- Eu que nem sequer tenho a coragem de escrever
os versos que me fazem doer.

José Gomes Ferreira